1.1 O que é?
A Síndrome Periódica Associada à Criopirina (CAPS) compreende um grupo de doenças auto-inflamatórias raras que incluem a Síndrome Auto-inflamatória Familiar Associada ao Frio (FCAS), a Síndrome de Muckle-Wells (MWS) e a Síndrome Neurológica Cutânea Articular Infantil Crónica (CINCA), também conhecida como Doença Inflamatória Multi-sistémica de Início Neonatal (NOMID). Estas síndromes foram descritas inicialmente como doenças clínicas diferentes, apesar de terem algumas semelhanças clínicas. Os doentes apresentam frequentemente uma sobreposição de sintomas que incluem febre, erupção cutânea semelhante a urticária (pseudo-urticária) e envolvimento articular de gravidade variável associadas a inflamação sistémica.
Estas três doenças apresentam-se com uma gravidade contínua: A FCAS é a doença mais ligeira, a CINCA (NOMID) é a mais grave e os doentes com MWS têm um fenótipo intermédio.
A caracterização destas doenças a nível molecular demonstrou a existência nas três doenças de mutações no mesmo gene.
1.2 É uma doença comum?
A CAPS é um conjunto de doenças muito raras que afetam apenas alguns indivíduos em cada milhão, mas provavelmente estão sub-diagnosticadas. A CAPS pode ser encontrada em todo o mundo.
1.3 Quais são as causas da doença?
A CAPS são doenças genéticas. O gene responsável pelas 3 doenças clínicas (FCAS, MWS, CINCA/NOMID) chama-se CIAS1 (ou NLRP3) e codifica uma proteína chamada criopirina. Esta proteína desempenha um papel fundamental na resposta inflamatória do corpo. Se o gene estiver alterado, confere uma função aumentada à proteína (chamada ganho de função) e as respostas inflamatórias estão aumentadas. Estas respostas inflamatórias de maior intensidade são responsáveis pelos sintomas clínicos observados na CAPS.
Em 30% dos doentes com CINCA/NOMID, não se encontra nenhuma mutação no CIAS1. Existe algum grau de correlação genótipo/fenótipo. As mutações observadas nos doentes com formas ligeiras de CAPS não foram observadas nos doentes afetados com formas mais graves e vice-versa. Fatores genéticos ou ambientais adicionais também podem modular a gravidade e os sintomas da doença.
1.4 É hereditária?
A CAPS é herdada como uma doença autossómica dominante. Isto significa que a doença é transmitida por um dos progenitores, o que tem a doença e é portador de uma cópia anormal (com mutação) do gene CIAS1. Uma vez que todos os indivíduos têm duas cópias de todos os genes, o risco de um progenitor afetado transmitir a cópia do gene CIAS1 com mutação, e como tal transmitir a doença a cada filho, é de 50%. Também podem ocorrer mutações de novo (novas). Nestes casos, nenhum dos progenitores tem a doença, nem é portador de mutação no gene CIAS1, mas a disrupção do gene CIAS1 desenvolve-se após a conceção da criança. Neste caso, o risco de outro filho desenvolver CAPS é aleatório.
1.5 É infeciosa?
As CAPS não são doenças infeciosas.
1.6 Quais são os principais sintomas?
A erupção cutânea — uma manifestação chave nas três doenças — é geralmente o primeiro sintoma observado. Independentemente da síndrome, apresenta as mesmas características. É uma erupção maculopapular migratória (parecendo uma urticária), geralmente sem prurido. A sua intensidade pode variar de doente para doente e com a atividade da doença.
A FCAS, anteriormente conhecida como urticária familiar ao frio, caracteriza-se por episódios recorrentes de febre de curta duração, erupção cutânea e dor nas articulações precipitados pela exposição a temperaturas baixas. Outros sintomas reportados frequentemente incluem conjuntivite e dor muscular. Os sintomas têm início geralmente 1-2 horas após a exposição generalizada a temperaturas baixas ou a variações de temperatura significativas, e a duração dos episódios é geralmente pequena (menos de 24 horas). Estes episódios são autolimitados (significa que se resolvem sem tratamento). Os doentes referem frequentemente um padrão de bem estar de manhã após uma noite quente, mas que piora no final do dia após um exposição ao frio. O início precoce da doença, no nascimento ou nos primeiros 6 meses de vida, é comum. Nos episódios de inflamação esta é detectada no sangue. A qualidade de vida dos doentes com FCAS pode ser afetada de forma variável com a frequência e a intensidade dos sintomas. No entanto, complicações tardias tais como surdez e amiloidose geralmente não ocorrem.
A MWS caracteriza-se por episódios recorrentes de febre e erupção cutânea associados a inflamação articular e ocular, embora nem sempre exista febre. A fadiga crónica é muito frequente.
Normalmente não são identificados fatores precipitantes dos episódios e o desencadear pelo frio é observado raramente. A evolução da doença é variável, desde episódios típicos recorrentes de inflamação até sintomas mais permanentes. Tal como na FCAS, os doentes com MWS descrevem frequentemente um padrão de agravamento dos sintomas ao final do dia. Os primeiros sintomas ocorrem precocemente mas também já foram descritos casos de início mais tardio da doença na infância.
A surdez é comum (ocorrendo em aproximadamente 70% dos casos) e geralmente começa na infância ou no início da idade adulta. A amiloidose é a complicação mais grave da MWS e desenvolve-se na idade adulta em aproximadamente 25% dos casos. Esta complicação é devida à deposição de amilóide, uma proteína especial associada à inflamação, em alguns órgãos (como por exemplo nos rins, intestino, pele ou coração). Estes depósitos provocam uma perda gradual da função do órgão, especialmente dos rins. Manifesta-se como proteinúria (perda de proteínas na urina), seguida de insuficiência renal. A amiloidose não é específica da CAPS e pode ser uma complicação de outras doenças inflamatórias crónicas.
É observada inflamação no sangue durante os episódios de inflamação ou persistente em casos mais graves. A qualidade de vida destes doentes é afetada de forma variável.
A CINCA (NOMID) está associada à apresentação mais mais grave neste espectro de doenças. A erupção cutânea é geralmente o primeiro sinal e ocorre no nascimento ou no início da infância. Um terço dos doentes pode ser prematuro ou leve para a idade gestacional. A febre pode ser intermitente, ligeira ou em alguns casos estar ausente. Os doentes queixam-se frequentemente de fadiga.
A gravidade da inflamação nos ossos e nas articulações é variável. Em aproximadamente dois terços dos doentes, as manifestações nas articulações são limitadas a dor articular ou inchaço transitório durante os episódios. No entanto, num terço dos casos ocorre envolvimento articular grave e incapacitante, resultante do crescimento excessivo da cartilagem. Estas formas podem causar grandes deformações nas articulações, com dor e limitação da amplitude dos movimentos. Num padrão simétrico, os cotovelos, joelhos, pulsos e tornozelos são as articulações mais frequentemente afetadas. As manifestações radiológicas são características. As artropatias com crescimento excessivo, quando existentes, ocorrem geralmente nas fases iniciais da vida, antes dos 3 anos de idade.
Quase todos os doentes apresentam alterações do sistema nervoso central (SNC) causadas por meningite asséptica crónica (inflamação não-infeciosa da membrana que rodeia o cérebro e a medula espinal). Esta inflamação crónica é responsável pelo aumento crónico da pressão intracraniana. Os sintomas associados a esta doença variam de intensidade e incluem dores de cabeça crónicas, por vezes vómitos, irritabilidade nas crianças pequenas e papiledema na fundoscopia (um exame oftalmológico específico). Em doentes gravemente afetados ocorre ocasionalmente epilepsia (convulsões) e défice cognitivo.
Os olhos também podem ser afetados pela doença. Pode ocorrer inflamação na parte anterior e/ou posterior do olho, independentemente da presença de papiledema. Na idade adulta, as manifestações oculares podem evoluir para perda de visão. A surdez de percepção é frequente e apresenta-se no final da infância ou mais tarde ao longo da vida. Em 25% dos doentes a amiloidose desenvolve-se com a idade. Podem ser observados atraso de crescimento e no desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários (as características pubertárias) como consequência da inflamação crónica. A inflamação no sangue é persistente na maioria dos casos. Uma avaliação cuidadosa dos doentes com CAPS revela habitualmente uma sobreposição importante dos sintomas clínicos. Os doentes com MWS podem reportar sintomas consistentes com FCAS, tais como suscetibilidade ao frio (ou seja, episódios mais frequentes no inverno), ou sintomas consistentes com um envolvimento ligeiro do SNC, tais como dores de cabeça frequentes ou papiledema assintomático, tal como observado em doentes com CINCA (NOMID). Da mesma forma, os sintomas associados ao envolvimento neurológico podem tornar-se evidentes à medida que os doentes envelhecem. Os membros da mesma família afetados por CAPS podem apresentar ligeiras variações de gravidade. No entanto, manifestações graves de CINCA (NOMID), tais como a artropatia hipertrófica ou o envolvimento neurológico grave, nunca foram reportados em membros de famílias afetadas pelas formas leves de CAPS (FCAS ou MWS ligeira).
1.7 A doença é igual em todas as crianças?
É observada uma enorme variabilidade da gravidade na CAPS. Os doentes com FCAS têm uma doença ligeira com um bom prognóstico a longo prazo. Os doentes com MWS são afetados de forma mais grave, devido à amiloidose e possível surdez. Os doentes com CINCA/NOMID têm a doença mais grave. Neste grupo, também existe variabilidade dependendo da gravidade do envolvimento neurológico e articular.
2.1 Como é diagnosticada?
O diagnóstico de CAPS baseia-se nos sintomas clínicos antes da confirmação genetica. A distinção entre FCAS e MWS ou entre MWS e CINCA/NOMID pode ser difícil devido à sobreposição de sintomas. O diagnóstico baseia-se nos sintomas clínicos e no histórico médico do doente. A avaliação oftalmológica (em particular a fundoscopia), a análise do LCR (punção lombar) e a avaliação radiológica são úteis para distinguir entre doenças contíguas.
2.2 Há tratamento ou cura para a doença?
A CAPS não pode ser curada, uma vez que são doenças genéticas. No entanto, graças aos avanços significativos na compreensão destas doenças, estão atualmente disponíveis novos e promissores medicamentos para tratar a CAPS e estando ainda sob investigação o seu efeito a longo prazo.
2.3 Quais são os tratamentos?
Trabalhos recentes sobre a genética e fisiopatologia da CAPS mostram que a IL-1 β, uma poderosa citoquina (proteína) da inflamação, é produzida em excesso nestas doenças e desempenha um papel importante no início da doença. Atualmente, existem vários medicamentos inibidores da IL-1 β (bloqueadores da IL-1) em várias fases de desenvolvimento. O primeiro medicamento utilizado no tratamento destas doenças foi o
anakinra. Demonstrou ser rapidamente eficaz no controlo da inflamação, exantema, febre, dor e fadiga em todas as CAPS. O anakinra também melhora eficazmente o envolvimento neurológico. Em alguns casos, pode melhorar a surdez e controlar a amiloidose. Infelizmente, este medicamento não parece ser eficaz na artropatia hipertrófica. As doses necessárias dependem da gravidade da doença. O tratamento deve ser iniciado precocemente na vida, antes da inflamação crónica provocar lesões irreversíveis nos órgãos tais como surdez ou amiloidose. São necessárias injeções subcutâneas diárias. São frequentemente reportadas reações locais no local da injeção, mas estas podem deixar de acontecer com o tempo. O rilonacept é outro medicamento anti-IL-1 aprovado pela FDA (Agência Americana dos Medicamentos e da Alimentação - Food and Drug Administration nos EUA) para doentes com mais de 11 anos de idade com FCAS ou MWS. São necessárias injeções subcutâneas semanais. O
canacinumab é outro medicamento anti-IL-1 recentemente aprovado pela FDA e pela Agência Europeia de Medicamentos (European Medicine Agency) (EMA) para doentes com mais de 2 anos de idade com CAPS. Recentemente, foi demonstrado que este medicamento controla eficazmente as manifestações inflamatórias nos doentes com MWS, através de uma injeção subcutânea a cada 4 a 8 semanas. Devido à natureza genética da doença, é possível que o bloqueio farmacológico da IL-1 deva ser mantido durante longos períodos de tempo, se não para toda a vida.
2.4 Quanto tempo durará a doença?
As CAPS são doenças para toda a vida.
2.5 Qual é o prognóstico (evolução e resultado previsto) a longo prazo da doença?
O prognóstico a longo prazo da FCAS é bom, mas a qualidade de vida pode ser afetada por episódios recorrentes de febre. Na síndrome de MWS, o prognóstico a longo prazo pode ser afetado pela amiloidose e insuficiência renal. A surdez é também uma complicação significativa a longo prazo. As crianças com CINCA podem apresentar alterações do crescimento durante a evolução da doença. Na CINCA/NOMID, o prognóstico a longo prazo depende da gravidade do envolvimento neurológico, neurosensorial e articular. A artropatia hipertrófica pode provocar incapacidades graves. A morte prematura é possível em doentes gravemente afetados. O tratamento com bloqueadores da IL-1 tem melhorado significativamente o prognóstico da CAPS.
3.1 De que forma pode a doença afetar o dia a dia da criança e da sua família?
A qualidade de vida pode ser afetada pelos episódios recorrentes de febre. Muitas vezes, pode existir um atraso considerável até o diagnóstico correto ser efetuado, o qual pode causar ansiedade nos pais e, por vezes, procedimentos médicos desnecessários.
3.2 E a escola?
É essencial manter a a educação e escolaridade das crianças com doenças crónicas. Existem alguns fatores que podem causar problemas enquanto as crianças estão na escola e, como tal, é importante explicar aos professores as possíveis necessidades das crianças. Os pais e os professores devem fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que a criança participe nas atividades escolares de forma normal, de modo a que a criança não só seja bem-sucedida academicamente, como aceite e apreciada pelos colegas e adultos. A integração futura no mundo profissional é essencial para um doente jovem e é um dos objetivos dos cuidados globais dos doentes crónicos.
3.3 E em relação à prática de desportos?
A prática de desportos é um aspeto essencial da vida diária de qualquer criança. Um dos objetivos do tratamento é permitir que as crianças tenham, na medida do possível, uma vida normal e não se considerem diferentes dos seus colegas e amigos. Como tal, todas as atividades podem ser praticadas desde que toleradas. No entanto, pode ser necessário restringir a atividade física ou suspendê-la durante a fase aguda.
3.4 E em relação à alimentação?
Não existe nenhum aconselhamento alimentar específico. De um modo geral, a criança deve seguir uma alimentação variada e adequada para a sua idade. Uma alimentação saudável e bem equilibrada com proteínas, cálcio e vitaminas suficientes é recomendada para uma criança em crescimento.
3.5 O clima pode influenciar a evolução da doença?
A temperaturas frias podem desencadear sintomas.
A criança pode ser vacinada?
Sim, a criança pode e deve ser vacinada. No entanto, o médico responsável pelo tratamento deverá ser informado antes de serem administradas vacinas vivas atenuadas, de modo a poder dar um aconselhamento adequado caso a caso.
3.7 E em relação à vida sexual, à gravidez e à contraceção?
Até à data, não existem disponíveis na literatura informações sobre este aspeto em doentes com CAPS. Regra geral, tal como noutras doenças auto-inflamatórias, é aconselhado planear a gravidez, de modo a adaptar antecipadamente o tratamento devido aos possíveis efeitos secundários dos agentes biológicos no feto.